terça-feira, 25 de setembro de 2012

Morreu Mestre Cupijó! Viva Cupijó!


Aviso: Esse texto é uma parte do terceiro capítulo de minha dissertação que tratou da música em Belém nos anos 1960-1970. Esse fragmento fala de Cupijó. Caso alguém se interesse, a dissertação completa esta aqui: http://www.ufpa.br/pphist/images/dissertacoes/2008/2008_tony_leao.pdf
As notas são originais, qualquer dúvida sobre as fontes citadas basta procura-las na bibliografia da dissertação.

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Um terceiro “mestre” importante neste período [anos 1970], não necessariamente do carimbó, mas do siriá, foi Joaquim Dias de Castro, ou simplesmente mestre Cupijó, como ficou conhecido. Segundo o que consta, o nome Cupijó surgiu em sua infância no município de Cametá, na região do baixo Tocantins. Como era um garoto doente até certa idade e não podia consumir comidas sólidas, vivia a reclamar para seus pais dizendo que iria fugir para o rio Cupijó, caso não lhe dessem a alimentação que queria. Resultado disso foi que a sua família acabou o apelidando pelo nome do rio que ele dizia que iria fugir. Surgia assim o nome pelo qual ele ficou conhecido desde o início de sua carreira [i].
Cupijó também vinha de uma família ligada à música. Ele era filho de Vicente Serão de Castro, figura importantíssima da música do município de Cametá. Seu pai nasceu em 1891 e foi remanescente do apogeu daquela cidade tocantina na época do intendente Heitor de Mendonça. Vicente Serrão de Castro foi regente da tradicional Banda de Música Euterpe Cametaense, e mestre-capela e regente do Coro Lira Angélica. Foi autor de vasta obra, em que constavam valsas, serenatas, quadrilhas, dobrados e música sacra [ii].
Graças a isso Cupijó teve contato muito cedo com a música. Seu primeiro instrumento foi o surdo, depois o prato, mas desde muito novo aprendeu segundo a leitura de partitura. Mais tarde aprendeu a tocar banjo, bateria, clarinete e violão. Tocou na Banda Euterpe Cametaense, a mesma que foi dirigida por seu pai. Sua estréia como músico se deu tocando bateria em um conjunto de propriedade de seu pai, o “Ases do Ritmo”, em um baile de fim de ano, em 1960 [iii].
Em 1961 passou a dirigir a Banda Euterpe, já que seu pai havia falecido, e também passou a atuar definitivamente no “Ases do Ritmo” nos aos 70. Além disso, dedicou-se a ensinar música gratuitamente, tendo uma escola de música em sua casa. Também dirigiu por certo período o coral da Matriz da Prelazia de Cametá.
Em 1973 lança o siriá em LP pela primeira vez, ao mesmo tempo em que o carimbó estourava no mercado regional. Em 1975 já chegava com o siriá a várias áreas do Brasil. Nesta época, seu terceiro disco, “Mestre Cupijó e seu ritmo”, foi gravado pela gravadora Continental.
Mesmo no período de maior divulgação do siriá, Cupijó dizia preferir o sossego de sua cidade interiorana. Não gostava muito de ir a Belém e a outras cidades maiores, só o fazia devido às necessidades inerentes à sua carreira. Essa badalação da cidade grande estava ligada também à badalação dos ritmos da moda. Neste sentido ele dizia que preferia o siriá “autêntico”, que ajudou a difundir. Falava ainda que talvez mais adiante começasse a ocorre com o siriá o mesmo que estava ocorrendo com o carimbó. Reclamava que o interesse dos mais “espertos” na busca do lucro estava se sobrepondo ao interesse da “autenticidade”. É importante observar que Cupijó se dizia um artista da música folclórica e não da música popular. Arrematava: “hoje o siriá é mais verdadeiro porque é menos sofisticado”[iv]. Cupijó se dizia um divulgador do folclore paraense, uma pessoa ligada por vivência a esse folclore: “Moro no interior, vivo, danço, conheço, bato tambor, toco, pino (...) sei a linguagem do homem do interior, converso com ele e vivo minha vida como um homem do interior”[v]. Daí que tinha forte aversão aos músicos da capital que tendiam a ir ao interior para conhecer as músicas daquela população com os seus gravadores na mão e depois gravavam como se fossem suas. “E não há nenhuma providência sobre esse comportamento. O Folclore deve ser visto como cultura do povo, anônimo”[vi] - concluía a este respeito.
É interessante observar que esse tipo de reclamação não foi exclusividade de Cupijó. A ida de músicos da cidade aos pequenos municípios e áreas rurais em busca da coleta do carimbó parecia ser um fato rotineiro neste momento. E isso acabava levando expectativas de ganhos financeiros e reconhecimento por parte dos tradicionais criadores, que após algum tempo não viam o resultado de seu trabalho aparecer. Com o passar dos anos, muitos compositores de carimbó começaram a se recusar a dar entrevistas ou a cantar suas músicas a pessoas que chegavam com gravadores ou câmeras de TV. A desconfiança se dava, pois para os criadores interioranos a presença destes “pesquisadores” poderia significar por um lado o registro acadêmico ou folclórico do carimbó, mas, na maior parte das vezes, significava a simples coleta para gerar gravações de discos onde as músicas apareceriam depois como de “domínio público”. Para o criador que acabava criando expectativas de algum ganho econômico ficava a decepção e desconfiança com qualquer um que viesse da cidade grande em busca de conhecer e registrar o carimbó [vii].
Cupijó ficou conhecido como o principal divulgador do siriá, música aparentemente originária do município de Cametá. Segundo a interpretação de alguns antigos moradores de Cametá entendidos no assunto, o siriá seria na verdade uma espécie de batuque aparentado com o carimbó. Para Mario Martins[viii], que era uma espécie de pesquisador da música cametaense, o nome siriá teria na sua origem o termo cereal, que com o passar do tempo ficou sendo conhecido pela população da cidade como a corruptela siriá. Seria uma criação tipicamente da cidade de Cametá. Para outros, a palavra síria tinha origem no local onde os escravos de Cametá pescavam o siri. Assim como teria ocorrido com palavras como “canaviá”, originária de canavial, e “arrozá”, de arrozal, teria surgido uma palavra, siriá, para referir-se ao local de pesca do siri, num processo de corrupção da palavra junto às comunidades pobres [ix].
Do ponto de vista musical, o siriá tinha proximidade com outras manifestações folclóricas como o marabaixo de Macapá[x] e mesmo o carimbó. Na opinião de Cupijó, a diferença maior entre carimbó e siriá estava relacionada à maneira como se dançavam cada ritmo, já que o siriá veio principalmente do roçado, do mutirão, sendo uma dança para grandes espaços, onde os movimentos de corpo acompanham a letra da música. Esse trabalho corporal de que falava Cupijó era conhecido em Cametá como “caianas”[xi]. Outras diferenças ainda segundo Cupijó seriam derivadas de uma maneira especial de tocar o curimbó - tambor - no siriá. Nele o tocador que está em cima do instrumento faz um movimento de calcanhar, ou mesmo de ponta de pé, sobre o couro, em sua parte inferior, abaixo de onde as suas mãos estão funcionando como baquetas, esfregando-o. Este movimento modifica a afinação do instrumento na hora de tocá-lo. Por fim, no mesmo tambor, que chega a ter até 2 metros de comprimentos, em que um tocador bate no couro com a mão em uma das extremidades, há uma segunda pessoa que batuca na madeira do tambor com pequenas baquetas de madeira rija, acompanhando o som que sai do couro[xii]. Para Cupijó, essas seriam as principais diferenças, mas como vimos acima isso ocorre também no carimbó, como por exemplo naquele feito por Verequete. O certo é que carimbó e siriá surgem e se tornam populares ao mesmo tempo, em um mesmo processo de valorização das músicas populares do interior.
Em junho de 1971, no jornal “Cametá”, José de Assunção elogiava o prefeito da cidade por colocar o Siriá nas festividades oficiais. Dizia que até aquele momento o siriá era uma música que existia apenas na parte profana e não oficial das festividades municipais, sobretudo nas zonas rurais. Não era tocado para a “sociedade” do município, apesar de sua longa existência que remontava ao período colonial, provavelmente de criação negra e indígena. Falava ainda que já era tocado com os “jazz”[xiii] nos “salões sociais”, mas que mantinha contudo suas características originais[xiv]. No mesmo período em que o carimbó começava a ganhar espaço em Belém, ocorria um processo parecido em Cametá com o siriá.
Em Cametá, o carimbó e o siriá no início de sua popularização eram tocados apenas no final das festas. Mas no momento máximo de sua difusão, o grupo de Cupijó chegava a tocar em 10 municípios do estado em um curto período de tempo. Apesar disso, os músicos do grupo nunca deixaram seus empregos, já que mesmo com tantos shows, diziam não ser possível viver de música por volta de 1973 [xv].
Em Belém, o siriá de Cupijó, assim como ocorreu com Pinduca, apareceu e conquistou espaço primeiramente nos clubes de subúrbio, como o Imperial e o Satélite, por exemplo. O Siriá aparece em Belém mais ou menos no mesmo período que o carimbó. No início dos anos 70 já se comentavam sobre esse novo gênero musical que vinha do interior do estado, mais particularmente do município de Cametá. Contudo, a postura de parte da intelectualidade e juventude em Belém será diferenciada em relação a Cupijó. Pinduca era visto por parte destes setores como uma espécie de deturpador do carimbó, por ter colocado em seu conjunto instrumentos modernos, como guitarra e baixo elétrico, e bateria. Já a visão sobre Cupijó foi outra, bastante boa desde o início, pelo menos é o que podemos perceber em um artigo escrito por Paes Loureiro no jornal Folha do Norte em 1973 [xvi].
Neste texto, Paes Loureiro reconhece em primeiro lugar a longevidade do siriá que lutou para sobreviver “durante longo anonimato”. Reconhece também o município de Cametá como uma cidade culturalmente muito importante na região, por ser “o manso território onde lutam contra o tempo e a indiferença, as últimas verdadeiras manifestações de nossa tradição popular”[xvii]. Mas o que fica fortemente visível em seu texto é a importância singular atribuída ao “Mestre Cupijó”, que aparece quase como um herói defensor da cultura e do povo da região. Aliás, de fato torna-se um herói no discurso Paes Loureiro já que é comparado a Pedro Teixeira, que realizou a fantástica aventura de navegar o Rio Amazonas em sua totalidade entre os anos de 1637 e 1638 [xviii], e também é relacionado à cabanagem que teve em Cametá um ponto de apoio muito importante [xix]. Assim comenta Paes Loureiro:

Mestre Cupijó reeditou Pedro Teixeira, aquele que conheceu o Rio das Amazonas, trazendo até nós, para nosso conhecimento, a alma de sua cidade, que no seu sopro confere vida ao barro primitivo de uma alegria, a que a luta brava da civilização começa a nos desacostumar.
Nele (...), entre barrancos de bemóis, corre o lento rio Tocantins, piscoso de lendas e mistérios; (...) nele brincam as crianças humildes de Cametá, fazendo cirandas em sustenidos e bequadros; nele se ergue a Cabanagem em punhos, deflagrando tambores e alegorias; nele percorre, na veia das melodias, o sangue legítimo da verdade popular (...).
Mestre Cupijó toca pelo amor de tocar. Ainda não aprendeu a vender a sua arte, porque seria mercadejar a sua alma [xx].

E a recíproca parecia ser verdadeira. Em 1976, referindo-se ao contexto musical de Belém, e à questão da difusão da música “folclórica” e popular paraense, Cupijó tece observações elogiosas à nova geração de músicos que surgia, assim como a artistas já de velha história. O relato a seguir é interessante para percebermos que artistas como Cupijó, do interior, aparentemente com pouco contato com o mundo das classes médias urbanas e seu meio cultural, reconheciam o papel desse grupo na construção de uma música popular com feições regionais. O reconhecia como grupo, sobretudo, onde encontrávamos desde o veterano Waldemar Henrique até os novatos. Ele dizia:


“Penso que nosso estado é muito feliz. Não apenas no campo folclórico, ao qual eu pertenço, como, também, na música popular. Chego mesmo a pensar que no Pará se pinta uma nova interprete nacional, com Fafá de Belém. E os compositores como Waldemar Henrique, Paulo André Barata e Paes loureiro, Vilar, Proença, foram uma constelação que muito me anima lá pelo meu interior [xxi].


[i] LIMA, Elza. Cupijó: mestre do cancioneiro popular. O Liberal, Belém, 01 ago. 1993. Caderno 3, p. 10.
[ii] SALLES, 1985, op. cit.
[iii] Mestre Cupijó lança CD para comemorar carreira. O Liberal, Belém, 28 ago. 1999. Caderno Cartaz, p. 6.
[iv] COUTO, Jesus. Hoje, siriá ao vivo, em Belém. A Província do Pará, Belém, 10 abr. 1976. 2º Cad., Transa Musical, p. 6.
[v] Ibidem.
[vi] Idem. No mesmo sentido, outra entrevista de Cupijó in: Mestre Cupijó, o rei do siriá, está elaborando o seu quinto LP. A Província do Pará, Belém, 15 jul. 1977. 1º Cad., p. 7.
[vii] Um outro exemplo de indignação sobre esse tipo de atitude pode ser visto no depoimento de D. Zazá, amiga de Mestre Lucindo, um popular criador de carimbó do município de Marapanim que se tornou conhecido em Belém já nos anos 80. D. Zazá chega inclusive a dizer que a partir de certo momento se recusaria a dar entrevistas ou a cantar o carimbó para qualquer pessoa que fosse até ela a não ser que fosse paga por isso. Dizia ainda que durantes anos seguidos eles teriam apenas recebido promessas de gravação e de recebimento de direitos autorais, coisa que nunca acontecia. Cf. Entrevista com D. Pequenina (esposa de mestre Lucindo) e D. Zazá. Museu da Imagem e do Som do Pará. (FV 91/12). Estas entrevistas parecem ter sido feitas nos anos 90, após a morte de Lucindo.
[viii] SILVA, Coely. Entrevista à Mario Martins: As verdades históricas do carimbó, que é “curembó”. O Liberal, Belém, 23 jul. 1974. p. 8.
[ix] MODESTO, Márcia. A influência negra na dança e no canto paraense. Cultural, Belém, set. 1988. p. 8.
[x] Batuque e dança de mestiços e negros do estado do Amapá. Sua área de maior incidência é a cidade de Mazagão Velho e o bairro do Laguinho, onde ficava o antigo quilombo do Curiaú. Cf. SALLES, 2007, op. cit. p. 198.
[xi] MARIA, Luíza. Cupijó o mestre do siriá, op. cit.
[xii] COUTO, Jesus. Siriá é lançado para todo o Brasil através da Continental. A Província do Pará, Belém, 20 abr. 1975. 2º Cad., Transa musical, p. 5.
[xiii] Em muitas cidades do interior, as bandas de baile dos anos 40, 50 e 60 eram conhecidas por jazz ou “jazzes”. Eram na verdade fruto da popularidade de bandas instrumentais, com presença de muitos instrumentos de sopro, que foi comum em todo o Brasil a partir do dos anos 30. Cf. SALLES, 1985, op. cit.
[xiv] ASSUNÇÃO, José. Siriá. Cametá, Cametá, 23 jun. 1971. Opinião, p. 5.
[xv] MARIA, Luíza. Cupijó o mestre do siriá. O Liberal, Belém, 25 nov. 1973. 3º Caderno, p. 9.
[xvi] LOUREIRO, João de Jesus Paes. Mestre Cupijó. Folha do Norte, Belém, 12 abr. 1973. 2º Caderno, p. 1.
[xvii] Ibidem, p.1.
[xviii] A famosa expedição de Pedro Teixeira fez parte do processo de conquista e ocupação da Amazônia pela coroa portuguesa, num momento em que nações estrangeiras ameaçavam ocupar definitivamente o território português nestas terras, particularmente os franceses que já haviam fundado a cidade de São Luis do Maranhão. No processo de expulsão destes povos e de conquista - nada amistosa como se sabe - dos indígenas ocorreu esta expedição. Entre 1637 e 1638 setenta soldados e mil índios liderados por Pedro Teixeira, partiram de Cametá, navegando pelo rio Amazonas até seu alto curso, penetrando nos rios Napo e Coca. Desta parte em diante os expedicionários foram por terra e alcançaram à cidade de Quito, que na época era a capital do Vice-Reino do Peru. Cf. NETO, José Maia Bezerra. A conquista portuguesa da Amazônia. In: FILHO, Armando Alves; JÚNIOR, José Alves; e NETO, José Maia Bezerra. Pontos de história da Amazônia, v. I. Belém: Paka-Tatu, 2001.
[xix] Cabanagem: movimento insurrecional ocorrido no Pará entre 1935 e 1940, que teve forte atuação das camadas populares contra as elites locais. É considerado como um dos maiores movimentos revolucionários populares do período imperial brasileiro. Cf. NETO, José Maia Bezerra. Cabanagem a revolução do Pará. In: FILHO, JÚNIOR e NETO, 2001, op. cit.
[xx] LOUREIRO, João de Jesus Paes. Mestre Cupijó, op. cit.
[xxi] COUTO, Jesus. Hoje, siriá ao vivo, em Belém. 1976, op. cit, p. 6.

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